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sábado, 18 de junho de 2011

O SONHO DOS RATOS



Rubem Alves (escritor)

Era uma vez um bando de ratos que vivia no buraco do assoalho de uma casa velha. Havia ratos de todos os tipos: grandes e pequenos, pretos e brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e da cidade. 

Mas ninguém ligava para as diferenças, porque todos estavam irmanados em torno de um sonho comum: um queijo enorme, amarelo, cheiroso, bem pertinho dos seus narizes. Comer o queijo seria a suprema felicidade...Bem pertinho é modo de dizer. 

Na verdade, o queijo estava imensamente longe porque entre ele e os ratos estava um gato... O gato era malvado, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho mais corajoso se aventurasse para fora do buraco para que o gato desse um pulo e, era uma vez um ratinho...Os ratos odiavam o gato. 

Quanto mais o odiavam mais irmãos se sentiam. O ódio a um inimigo comum os tornava cúmplices de um mesmo desejo: queriam que o gato morresse ou sonhavam com um cachorro...

Como nada pudessem fazer, reuniram-se para conversar. Faziam discursos, denunciavam o comportamento do gato (não se sabe bem para quem), e chegaram mesmo a escrever livros com a crítica filosófica dos gatos.Diziam que um dia chegaria em que os gatos seriam abolidos e todos seriam iguais. "Quando se estabelecer a ditadura dos ratos", diziam os camundongos, "então todos serão felizes"... 

- O queijo é grande o bastante para todos, dizia um. 

- Socializaremos o queijo, dizia outro. 

Todos batiam palmas e cantavam as mesmas canções. 

Era comovente ver tanta fraternidade. Como seria bonito quando o gato morresse! Sonhavam. Nos seus sonhos comiam o queijo. E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Porque esta é uma das propriedades dos queijos sonhados: não diminuem: crescem sempre. E marchavam juntos, rabos entrelaçados, gritando: "o queijo, já!"... 

Sem que ninguém pudesse explicar como, o fato é que, ao acordarem, numa bela manhã, o gato tinha sumido. O queijo continuava lá, mais belo do que nunca. Bastaria dar uns poucos passos para fora do buraco. Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo poderia ser um truque do gato. Mas não era. 

O gato havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glorioso, e dos ratos surgiu um brado retumbante de alegria. Todos se lançaram ao queijo, irmanados numa fome comum. E foi então que a transformação aconteceu. 

Bastou a primeira mordida. Compreenderam, repentinamente, que os queijos de verdade são diferentes dos queijos sonhados. Quando comidos, em vez de crescer, diminuem. 

Assim, quanto maior o número dos ratos a comer o queijo, menor o naco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns para os outros como se fossem inimigos. Olharam, cada um para a boca dos outros, para ver quanto queijo haviam comido. E os olhares se enfureceram. 

Arreganharam os dentes. Esqueceram-se do gato. Eram seus próprios inimigos. A briga começou. Os mais fortes expulsaram os mais fracos a dentadas. E, ato contínuo, começaram a brigar entre si. 

Alguns ameaçaram a chamar o gato, alegando que só assim se restabeleceria a ordem. O projeto de socialização do queijo foi aprovado nos seguintes termos: 

“Qualquer pedaço de queijo poderá ser tomado dos seus proprietários para ser dado aos ratos magros, desde que este pedaço tenha sido abandonado pelo dono”. 

Mas como rato algum jamais abandonou um queijo, os ratos magros foram condenados a ficar esperando.Os ratinhos magros, de dentro do buraco escuro, não podiam compreender o que havia acontecido. 

O mais inexplicável era a transformação que se operara no focinho dos ratos fortes, agora donos do queijo. Tinham todo o jeito do gato o olhar malvado, os dentes à mostra. 

Os ratos magros nem mais conseguiam perceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de agora. E compreenderam, então, que não havia diferença alguma. Pois todo rato que fica dono do queijo vira gato.


quinta-feira, 17 de março de 2011

O PINTASSILGO E AS RÃS - Rubem Alves

Rubem Alves


Num lugar muito longe daqui, havia um poço fundo, abandonado e escuro que alguém cavara, muitos e muitos anos atrás, não se sabe bem para que. Lá dentro se alojou um bando de rãs. As primeiras a entrar pensaram que aquele era um local bom de se viver, protegido, úmido, gostoso. De um pulo caíam lá dentro. Só que não perceberam que pular no buraco é fácil. O difícil é pular para fora dele. O poço era fundo demais e elas nunca mais puderam sair. Ficaram vivendo lá dentro. Casaram-se; tiveram filhos, multiplicaram-se. As mais velhas ainda se lembravam da beleza do mundo de fora e morriam de saudades. Contavam estórias para seus filhos e netos.
-- Quando eu era jovem, e ainda não tinha caído neste buraco... Era assim que sempre começavam. A princípio, a meninada parava para ouvir e gostava. "Estórias da carochinha", eles diziam. O fato é que nunca haviam estado do lado de fora, e pensavam que as tais estórias não passavam de invenções de seus avós já caducos. O tempo passou, os velhos morreram, e até mesmo essas estórias foram esquecidas. As novas gerações foram educadas segundo novos princípios pedagógicos, currículos adequados à realidade, o que importa é passar no vestibular, e acabaram por acreditar que o seu buraco era tudo o que existe no universo. Isto era cientifico, resultado da rigorosa análise material do seu mundo. O real era um cilindro oco e profundo, onde a água, a terra e o ar se combinavam para formar tudo o que existia. As rãzinhas aprendiam que o seu era o melhor dos mundos e, na escola, aprendiam a recitar:
"Rãzinha, não verás buraco algum como esteAma, com orgulho, o buraco em que nasceste..."
A vida, lá dentro, era como a vida em todo lugar. Havia as rãs fortes e truculentas. Elas mandavam nas outras que eram fracas e tinham de obedecer e trabalhar dobrado. Os insetos mais gostosos iam sempre para as mais fortes. As rãs oprimidas achavam, com toda a razão, que isto era uma injustiça. E, por isso mesmo, preparavam-se para uma grande revolução que poria fim a esse estado de coisas. Quando a classe dominante fosse derrubada, a vida no fundo do poço ficaria democrática e os insetos seriam distribuídos com justiça...
Se o buraco não era tão bom quanto cantava a poesia (assim diziam os ideólogos da revolução), era porque ele estava dominado pelas rãs fortes...
Aconteceu, entretanto, que um pintassilgo que voava por ali viu a boca do poço. Ficou curioso e resolveu investigar. Baixou o vôo e entrou nas profundezas. Qual não foi a sua surpresa ao descobrir as rãs! Mas mais perplexas ficaram elas ante a presença daquela estranha criatura. A simples presença do pintassilgo punha em questão todas as teorias sobre o mundo, pois que dele não havia registro algum em seus arquivos históricos. O pintassilgo morreu de dó ao ver as pobres rãs, prisioneiras daquele buraco fétido e escuro, sem nada saber do lindo mundo que havia fora do poço. Como é que elas podiam viver ali dentro, sem nunca pensar em sair? Claro que para se planejar sair é preciso acreditar que existe um "lá fora". Mas as rãs sabiam que um "lá fora" não existia, pois os limites do seu buraco eram os limites do universo.
O pintassilgo resolveu contar-lhes como era o mundo de fora. E se pôs a cantar furiosamente. Queria ajudar as pobres rãs...
Trinou flores, campos verdes, riachos cristalinos, lagoas, insetos de todos os tipos, sapos de outras raças e outros coaxares, bichos os mais variados, o sol, a lua, as estrelas, as nuvens.As rãs ficaram em polvorosa e logo se dividiram.Algumas acreditaram e começaram a imaginar como seria lá fora. Ficaram mais alegres e até mesmo mais bonitas. Coaxaram canções novas. E começaram a fazer planos para a fuga do poço. Desinteressaram-se das esperanças políticas antigas.
-- Não, não queremos democratizar o fundo do poço. Queremos é sair dele... Preferimos ser gente simples lá fora, onde tudo é bonito, a ser elite dominando aqui dentro, onde tudo é escuro e fedido...
As outras fecharam a cara e coaxaram mais grosso ainda. Não acreditaram...
O pintassilgo resolveu, então, trazer provas do que dizia. Chamou abe-lhas, com mel. Convidou borboletas coloridas. Trouxe flores perfumadas...
Mas tudo foi inútil para os que não queriam acreditar.-- Este bicho é um grande enganador, eles diziam. Sabemos que estas coisas não existem. Aprendemos em nossas escolas...O rei reuniu seus generais e ponderou que as idéias do pintassilgo eram politicamente perigosas. As rãs estavam perdendo o interesse pelo trabalho. Produziam menos. Com isto havia menos recursos para as despesas do Estado, especialmente uma ferrovia que se pretendia construir, ligando um lado do poço ao outro. Trabalhavam menos, coaxavam mais. Claro que as palavras do pintassilgo só podiam ser mentiras deslavadas, intrigas de oposição...
Os revolucionários, igualmente, puseram o pintassilgo de quarentena, pois o seu canto enfraquecia politicamente as rãs dominadas, que agora estavam mais interessadas em sair que em revolucionar o poço.
As rãs intelectuais, por sua vez, se puseram a fazer a análise filosófica, ideológica e psicanalítica da fala do pintassilgo. O seu relatório foi longo. Nele concluíram que:de um ponto de vista filosófico, faltava rigor ao discurso do pássaro, pois ele mais se aproximava da poesia que da ciência;de um ponto de vista ideológico, tratava-se de um discurso alienado, no qual não se fazia nem mesmo uma análise crítica das condições objetivas da sociedade ranal;de um ponto de vista psicanalítico, era óbvio que o pintassilgo sofria de perigosas alucinações que, dado o seu conteúdo, poderiam se transformar num fenômeno de massas.
Observaram, finalmente, que dadas as evidências, o pintassilgo se constituía num grave perigo tanto para a cultura como para as instituições do mundo das rãs. E com isto pediam das pessoas de boa vontade e responsabilidade as providências devidas para erradicar o mal.
O manifesto das rãs foi acolhido unanimemente tanto pelos líderes da direita como pelos líderes da esquerda pois, para além de suas discordâncias conjunturais, estava seu compromisso comum com o bem-estar e a tranquilidade da família ranal.Por ocasião da próxima visita do pintassilgo, ele foi preso, acusado de enganador do povo, morto, empalhado e exposto no Museu de História.Quanto às rãs, foram para sempre proibidas de coaxar as canções que o pintassilgo lhes ensinara.Um aluninho-rã, que visitava o museu, perguntou à sua professora:-- Que é aquilo, professora?-- É um pintassilgo, ela respondeu.-- E que coisas estranhas são aquelas nas suas costas?, ele perguntou. -- São asas...-- E para que servem?, ele insistiu.-- Para voar...-- E nós voamos?-- Não, respondeu a professora. Nós não voamos. Nós pulamos...
E não seria melhor voar?A professora compreendeu então, com um discreto sorriso, que um pintassilgo, mesmo empalhado, nunca seria esquecido.