terça-feira, 4 de março de 2014

OS GRILHÕES DA SORTE


O ano era 1866, e apesar de toda a pressão externa, o Brasil ainda era um país de mão de obra escrava. Os grandes produtores de café não abriam mão deste sistema, e até então vinham ganhando esta queda de braço, para infelicidade dos abolicionistas locais que sonhavam com um país mais branco. Este é o cenário político de nossa estória, um cenário manchado de sangue e suor.
A fazenda ouro verde era uma das principais produtoras de café da região, e possuía cerca de cem escravos, a maioria homens. todos eles sem exceção dormiam nas senzalas, mesmo as escravas que trabalhavam na casa grande, pois a esposa do coronel não suportava a ideia de dormir debaixo do mesmo teto com escravo.
A lua estava bonita, como há muito tempo não se via, o céu parecia estar em festa, mas apesar de tal espetáculo celeste, a noite não parecia trazer nada de especial. Porém naquela noite o Coronel, sua esposa e suas duas filhas saíram da casa grande e se embrearam na mata,como se estivem atordoados ,e nunca mais foram vistos. O capitão do mato, que também era negro, e havia conquistado este posto por tamanha lealdade ao coronel, e tamanha deslealdade com seu povo, estava prestes a trancar a senzala,quando de repente não se lembrava de mais nada ,nem mesmo seu nome, olhou para dentro da senzala e avistou outros, de pele escura como a sua.
Ao entrar, o capitão do mato descobriu que todos haviam perdido a memória, ninguém se lembrava de nada, como se suas vidas começassem ali. Algo curioso também foi notado, todos usavam uma corrente nos pés e na ponta desta corrente havia uma pesada bola, então começaram a buscar um significado, e deduziram que aquele apetrecho deveria ser ter enorme importância para suas vidas, pois com exceção de uma única pessoa todos possuíam um exemplar, e finalmente concluíram que aquilo era um amuleto, uma proteção divina, e que o jovem que não possuía grandioso objeto, deveria ter ofendido gravemente os deuses.
O grilhão devia pesar cerca de seis quilos,mas ninguém reclamava,realizavam seus afazeres carregando seu amuleto com enorme satisfação. Ninguém se afastava das redondezas da senzala, os amuletos eram pesados demais para uma longa caminhada, apenas o capitão do mato, que por não possuir um amuleto havia recebido o nome de Kamavua,que significa o azarento,era capaz de percorrer longas distancias ,mas não o fazia por acredita que afastaria ainda mais as pessoas.O tempo passava e Kamavua não conseguia o respeito e a admiração de seu povo,nenhuma mulher olhava para ele,mulher alguma ia querer construir família com alguém que não possui as bênçãos do deuses,e além disso é complicado criar laços com alguém que não possui nada que o prenda ,e a qualquer hora pode ir sem nenhuma cerimônia e nem dificuldades ,para nunca mais ser visto.E pensando assim os pesados amuletos faziam ainda mais sentido.
A casa grande era vista como a morada dos deuses, e ninguém entrava lá, faziam suas oferendas e preces do lado de fora, em frente à sacada. Todo dia Kamavua se ajoelhava e suplicava aos deuses que lhe concedesse a benção do amuleto, e certo dia enquanto fazia suas preces ele avistou um amuleto debaixo de um banco na sacada da morada dos deuses,conclui então que enfim suas preces foram ouvidas,e sorridente foi buscar seu amuleto.O jovem colocou seu amuleto e com muita dificuldade para caminhar mas bastante eufórico se encaminhou para a senzala.Seu amuleto era novo e reluzente,bem diferente dos amuletos enferrujados que os outros usavam.A felicidade que experimentava parecia não caber no peito.
Kamavua se tornou o mais popular entre os homens da senzala, e o mais cobiçado pelas mulheres. A ele foi concedido o direito de escolher outro nome, já que aquele não fazia mais nenhum sentido. Não se sabe por que,mas escolheu ser chamado de Damião. Os anos se passaram e a senzala foi se enchendo de criança que não possuíam amuletos, o que intrigava a todos.Durante uma brincadeira ao redor da morada dos deuses ,as crianças encontraram um baú cheiinho de amuletos e logo foram avisar aos mais velhos,que fizeram uma reunião e concluíram que estes eram os amuletos das crianças.Só havia um problema,os amuletos eram grandes demais para pernas tão finas,logo chegaram àconclusão que para usar um amuleto era preciso chegar a vida adulta,e que as crianças precisariam provar com atos de coragem que eram dignos de tamanha graça. As crianças da fazenda ouro verde não viam a hora de crescerem e tornarem-se adultos, para assim receberem seus pesados amuletos.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Astoufo e Romualdo(Deus existe?)


Desde a infância, Astolfo e Romualdo se gladeavam em inúmeros debates, nunca concordavam em nada, e tudo era motivo para nutrir esta disputa, quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha, se existe vida extraterrestre, qual fruta tem mais vitamina c, quem foi melhor entre Pelé e Maradona, e por ai vai.
Astolfo se tornou ateu e Romualdo pastor de igreja, mas apesar das diferenças, a amizade continuou a mesma, e a discussão também. Era só um olhar para o outro que começava tudo, ficavam horas tentando provar de que estavam certos quanto à existência ou não de Deus, Astoufo munido de vários livros filosóficos e científicos, e Romualdo com sua bíblia velha de guerra, e seus incansáveis argumentos.
Certo dia Romualdo veio atônico, pois queria mostrar à Astoufo uma falha em seu argumento, e assim desbancar o amigo. Porém o amigo estava desanimado e não deu muita confiança. O que houve com você perguntou Romualdo.
Então Astoufo levantou os olhos e respondeu com uma serenidade incomum e uma leve melancolia:
-Estou doente, não tenho mais muito tempo de vida.
Romualdo leu um trecho bíblico para o amigo, que permaneceu calado. Ao final da leitura, Romualdo colocou as mãos sobre os ombros do amigo e disse:
Você está vendo meu velho amigo como é tolice não crer?Ainda há tempo, vejo em seus olhos o tamanho da tristeza de um homem quem enxerga a morte como o fim. Deve ser muito triste ser ateu. Romualdo deu um sorriso irônico e respondeu:
-Não é isso,é que só agora que a morte está próxima,é que percebi que se você estiver certo,e existir vida após a morte,vou ter que engolir você me apontar o dedo e me jogar na cara que estava certo,por outro ado se eu estiver certo,e tenho certeza que estou,não vou ter a mesma chance...O máximo que eu consigo nesta disputa é um empate. Isso não  é justo!não é justo!por isso,não me encha mais o saco com essa discussão.Vamos falar de futebol que eu ganho mais.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Coma Induzido


Há uma fresta no túmulo.
Translúcida vertigem no velar da negra divindade.
Uma luz imaculada profana o caminho do céu, adentra leve, ilumina a 
minha face e edifica a minha alma.
Meu ser questiona entre pensamentos que acumulam-se nas minhas veias e nervos.
Será a luz da razão? Ou as tochas das sentinelas inquisidoras do sistema?

Excluíram-me da idéia de existência. Forjam o meu valor.
O ser é, e o não ser também é.
Renasci no transe oscilante e circular, no devaneio lúgubre do martelo, do ginete e da
bigorna.

Renasci na terceira noite.

Inábil aos gestos e ação, inefável na loucura e razão, fui ao encontro da coruja no alto
da torre onde ela observa seres mórbidos em seus hábitos degenerativos.
A sociedade é um grande e assombroso cárcere ideológico, fundamentado nos alicerces
da mentira e manipulação, ou do que todos acreditam ser verdade.

Cronos caminha e deixa seus rastros na história, rastro de sangue e decadência, de luta
contra o abstrato.
Por instinto, sobrevivemos, pois o karma humano é o roncar do estômago, o homem vende sua liberdade por um pedaço de pão, prostituem suas almas pela carne alheia;
julgam, entre conceitos pérfidos, acomodam suas mentes no conforto da alienação e
condenam suas virtudes no ressentimento.

Entendo que é um dever do ser humano questionar o valor de sua existência, desse modo
tornar-se um ser cônscio de suas idéias e anseios, sobrepondo os preconceitos existenciais e 
religiosos fazendo-se consciente dos alvitres propostos e prepostos em sua jornada ao
acaso vivente.

Quando se procura a verdade nada mais importa,  a vontade de se seguir esse caminho é
mais importante do que a conquista pois não há defesa nos tribunais do sistema; o juri e
os réus estão condenados. O juri ao perpétuo conformismo e nós os marginais, encarcerados na utopia do nosso ideal.
Não tememos a morte, pois já nascemos póstumos.

Flávio Vinícius



sábado, 17 de março de 2012

Em missivas



Caríssimo Escrivão da Noite

Medidas Incompreensíveis...O absurdo a que nos propomos e que, em tão rígida madeira resolvemos talhar - razões em forma de libelo – intitula-se, como é sabido por alguns, Filosofia Marginal. Apodo melhor seria difícil. Mas qual seria mesmo a intenção dessa polêmica e absurda malha de pensadores? Intenção qualquer que seja não se identifica nem um pouco com a da ciência (razão instrumental) nem com o escopo dela (a pecúnia). Se porventura o sistema capitalista, com suas armas aniquiladoras, resolvesse nos admitir para logo em seguida nos banalizar, como tem feito com a nata intelectual e seus excrementos ideológicos, seria surpreendido por uma ácida indigestão. Eis, então, o primeiro adjetivo, ou melhor, caráter da Filosofia Marginal: uma razão acidamente indigesta. Sabemos muito bem que a ciência, precursora do progresso, dirige seu comboio maquinando respostas quantificáveis e mensuráveis, assegurando “eficiência total” e delimitando milagrosamente a área de saber e exploração racional. E nessa perspectiva o poder e o controle são exercidos e manipulados com maestria (ironicamente me lembro de Paganini e seu violino). No torvelinho de “transformações” sociais em que somos envolvidos conseguem ainda que as conseqüências de uma razão que só olha para frente passem despercebidas (laconicamente tento não pensar em um animal com viseiras). A codificação ideológica é óbvia: “Está cientificamente comprovado”. ...Inconteste?Ora, não nos esqueçamos que a ciência trabalha com probabilidades e estatísticas, o que pode constituir uma fenda tendenciosa no que se refere ao conhecimento. Conferir à ciência natural uma autoridade que outrora era do Deus cristão resolveria os problemas seculares da inquietude humana ou só apresentaria caminhos igualmente dolorosos? A “Filosofia”, que a toda hora é ridicularizada, fica com a batata quente e limita-se a assoprar as mãos dentro da jaula conceitual que ela mesma criou; fica com a parte que a ciência não quer perder tempo e que há muito rejeitou: refletir sobre o que já foi feito e estabelecido. Essa “Filosofia”, devido à autocontemplação, é, todavia, impotente, porque evita descer ao carcomido mundo dos raciocínios braçais, isto é, dos raciocínios que parecem ter membros, pois a todo tempo enfrentam ignorâncias colossais. Não teria sido a “Filosofia” cerceada pela razão instrumental? Evidente é que, ambas, persuadidas a legitimar a ideologia da inexorabilidade do sistema vigente, parecem satisfeitas com o status que lhes é conferido e cumprem perpetuar porcos rituais morais que antes tão veemente combatiam. Assim, uma razão que aponte essas incoerências tem que ser violentamente excluída, colocada à margem, pois parece apontar com uma diatribe em forma de metralhadora para todos os lados. Assemelha-se vivamente à loucura,um verdadeiro absurdo. Sim...O absurdo a que nos propomos – e não abrimos mão da palavra verdadeiro – chama-se Filosofia Marginal e não nos identificamos pelo diploma, pelo currículo ou qualquer meritocracia, senão pela vitalidade do nosso pensamento.

ao filósofo Sidnei, Tchê.
Eduardo Soares. 06 de Março de 2007.